Por Vitor Paiva no hypeness | 10/09/2018
O incêndio que destruiu quase todo o acervo de 20 milhões de peças do Museu Nacional no último domingo e, com ele, 200 anos de pesquisa científica, é sem dúvida a maior tragédia do tipo no Brasil. Infelizmente, porém, esse não foi de forma alguma o primeiro incêndio a devastar um museu por aqui.
Somente nos últimos oito anos, queimaram parcialmente o Instituto Butantan, o Memorial da América Latina, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu de Ciências Naturais da PUC de Minas e a Cinemateca Brasileira, entre outros. O descaso com tais instituições e com a própria cultura e memória do país parece ser, portanto, um traço lamentavelmente profundo do país.
Um caso, porém, se destaca em especial, pelo valor simbólico, artístico e mesmo financeiro do acervo destruído: o incêndio que consumiu praticamente todo o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na madrugada de 8 de julho de 1978.
Inaugurado em 1958, o MAM oferecia um acervo de mais de mil peças, que se destruiu em quase 90%, e ainda recebia algumas exposições itinerantes quando da tragédia, como “Arte Agora”, trazendo cerca de 25 artistas latino-americanos. Entre eles, 80 telas do artista uruguaio Torres Garcia – todas destruídas, desaparecendo assim quase que integralmente todo o trabalho da vida do artista. No acervo, obras dos maiores nomes da história da arte moderna, como Matisse, Dalí, Picasso, Miró, Klee, Magritte e Portinari, além de centenas de obras de outros artistas brasileiros. Tudo virou cinza e brasa – assim como também desapareceria no fogo o prestigiou do Brasil por algumas décadas no cenário internacional de arte. O museu só seria reaberto em 1982.
Segundo relatos testemunhais da época, o incêndio propriamente começou às 3h40, e durou cerca de duas horas e meia, sendo controlado pelos bombeiros. Não houve vitimas, e a estrutura do incrível prédio projetado por Affonso Eduardo Reidy não sofreu abalos significativos – o local foi liberado pela manhã do dia 9. Acontece que, assim como o Museu Nacional era um dos maiores centros de pesquisa e formação científica do mundo, o MAM também se afirmava como um dos mais importantes centros de formação e difusão de arte e cultura do país, e a perda na época de tal local e principalmente de tal acervo não poderia ser contornada por qualquer compensação financeira ou seguro.
O fogo teria começado na sala onde o grupo chileno “Águas” havia feito uma apresentação, e se alastrado rapidamente por conta do vento para o corredor e, em seguida, para o piso superior. No terceiro andar, as salas de administração e a biblioteca do museu foram atingidas em seguida, para depois queimarem o cinema, o arquivo e ainda outras salas menores. Assim como hoje, à época rapidamente as explicações e acusações para justificar o ocorrido se proliferaram para todos os lados: o dinheiro era escasso, a administração seria amadora, o descaso era total.
Outro traço comum que parece não ter mudado em nada nesses quase que exatos 40 anos que separam o incêndio do MAM da tragédia no Museu Nacional é a falta de estrutura e a precariedade dos equipamentos dos bombeiros. Se, no caso do último domingo, os hidrantes ao redor do Museu Nacional estavam simplesmente secos, tendo sido preciso pedir caminhões pipa da CEDAE e bombear a água dos lagos da Quinta da Boa Vista para conseguir ao menos tentar combater o fogo, no caso do MAM, em 1978, testemunhas disseram que os primeiros caminhões que chegaram no local tinham defeitos mecânicos e mangueiras furadas. Quando enfim uma equipe maior e mais preparada de fato começou a combater o incêndio, não havia muito mais o que salvar – o caso era somente impedir que o fogo se alastrasse ainda mais.
Tal retrato de modo geral não questiona a competência, a coragem ou a dedicação dos bombeiros propriamente – esses heróis que, assim como quem administra museus e pesquisas científicas no Brasil, precisam dar tudo de si com tão pouco dinheiro ou mesmo interesse, para realizar trabalhos de fundamental importância e que muito pouco serão reconhecidos. Trata-se de perceber como a precariedade e o abandono cultural, científico e público no Brasil são projetos antigos, patrocinados tanto pelo estado quanto pela iniciativa privada, que lançam literalmente às chamas até mesmo os próprios bombeiros, sem que aja nada que possa ser feito para salvar um pouco do trabalho sério e importante feito no país.
Estimou-se à época que a coleção destruída valia em torno de 10 a 15 milhões de dólares, e os danos no prédio foram avaliados em 7,5 milhões de dólares – valor que hoje, numa correção simples, se aproximaria dos 100 milhões de dólares no total. Trata-se, porém, de uma estimativa fria, e que não leva em conta o inestimável valor simbólico, histórico e memorial, esses perdidos para sempre. Algumas esculturas e cerca de 50 pinturas puderam ser recuperadas do incêndio, mas o MAM precisou praticamente se reinventar do zero para seguir existindo.
E o museu conseguiu se reerguer, ainda que tal mancha de fogo, cinza e água em sua história permaneça. Com 12 mil peças em seu acervo atualmente, a reconstrução de tal acervo se deu em boa parte por generosidade de diversos artistas e colecionadores ao redor do mundo, para que uma instituição tão importante não desaparecesse simplesmente. Trata-se do exato nó górdio da tragédia que abateu o Museu Nacional: afinal, estamos falando nesse caso de um acervo absolutamente insubstituível.
Da mesma forma, porém, que a crise econômica parece ser uma bandeira nacional, permanece sendo o descaso com a cultura, a arte e a ciência um trágico traço essencial do Brasil, e o anúncio recente de que o MAM decidiu colocar à venda uma de suas mais valiosas peças, a “Nº 16”, quadro do pintor americano Jackson Pollock, colocou o mundo da arte em apreensão. A venda seria feita para sanar questões administrativas e orçamentarias, em um momento de queda na receita e dificuldade de captação. Centenas de artistas e especialistas se colocaram contra a venda, criticando a atual administração, e o imbróglio permanece.
Seja como for, o fato é que os museus do Brasil estão claramente ameaçados de extinção – e, em se tratando de instituições tão importantes quanto o MAM ou o Museu Nacional, quem fica no centro desse alvo é o próprio país. A maneira com que um país trata sua arte e sua pesquisa científica, feito um carma, será a maneira com que o futuro tratará esse mesmo país. Nesse sentido, o mínimo que precisa ser feito agora, já que a tragédia no Museu Nacional não foi a primeira, é trabalhar para que ao menos ela seja a última – pois cada vez mais o destino que nos espera parece ser mesmo o das cinzas e ruínas.
Vitor Paiva é jornalista, escritor, pesquisador e músico. Nascido no Rio de Janeiro, é Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Trabalhou em diversas publicações desde o início dos anos 2000, escrevendo especialmente sobre música, literatura, contracultura e história
Publicado originalmente no hypeness
https://www.hypeness.com.br/2018/09/picasso-portinari-matisse-em-1978-incendio-destruiu-quase-todo-o-acervo-do-mam-do-rio/