Arquitetura hostil: a quem pertencem nossas cidades?

As arquitetas Carol Bernardo e Tamires de Alcântara, colunistas do Archtrends, problematizam a arquitetura hostil nos espaços públicos. Entenda o termo e descubra por que essa prática vai contra um bom urbanismo

Archtrends | 16/01/2023

No dia 22 de dezembro de 2022, foi derrubado o veto do então presidente Jair Bolsonaro ao projeto de Lei 488/2021, que veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público. Promulgada pelo Congresso Nacional, a lei nº 14.489/2022 leva o nome de Padre Júlio Lancellotti, cidadão paulistano, pedagogo, presbítero católico, conhecido por sua dedicação às causas sociais. Classificada como “lei de ocasião”, quando criada a partir de fatos que mobilizaram a opinião pública, acresce ao artigo 2º do Estatuto da Cidade o inciso XX:

Art. 2º […]
XX – promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população. ” (NR).

arquitetura hostil, como se convencionou chamar, é um conjunto de dispositivos construtivos que têm como objetivo impedir a permanência de pessoas, especialmente daquelas em situação de rua, em bancos de praças, espaços residuais em fachadas e demais áreas livres do espaço público. Uma ideia ultrapassada, pautada na especulação imobiliária, onde acredita-se que a remoção dessas pessoas valoriza o entorno e, consequentemente, aumenta o valor dos imóveis da região, a chamada gentrificação

Arquitetura hostil. Charge de Armandinho 
Arquitetura hostil (Charge de Armandinho)

Se a base da arquitetura é o abrigo e o ofício do Arquiteto e Urbanista é justamente propor espaços de bem estar e acolhimento, impedir o uso de espaços públicos é, definitivamente, uma anti-arquitetura. Embora esse debate no Brasil tenha ganhado força apenas nos últimos anos, essa prática está presente em diversas cidades mundo afora, com a instalação de cacos de vidro, pedras, barreiras, peças pontiagudas e outros elementos que hostilizam o usuário e reforçam a mensagem de que “esse lugar não é para você”.

Padre Júlio Lancellotti arquitetura hostil
Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, em viaduto da Zona Leste de São Paulo onde foram instalados blocos de pedra pela prefeitura (Foto: Reprodução / Instagram)

Além de não resolver a complexa questão das pessoas em situação de rua, a arquitetura hostil influencia na relação do indivíduo com o espaço público e impede que seus equipamentos sejam plenamente utilizados, afinal, uma simples atividade como sentar em um banco para descansar e desfrutar da sombra de uma árvore é prejudicada pela inserção desses elementos. Sem a liberdade de utilizar os espaços públicos todos nós perdemos, nossas cidades tornam-se mais frias, agressivas e excludentes, nossas praças e calçadas são apenas locais de passagem.

Padre Júlio Lancellotti em viaduto da Zona Leste de São Paulo
Padre Júlio Lancellotti em viaduto da Zona Leste de São Paulo (Foto: Reprodução / Instagram)
arquitetura hostil em curitiba
Floreiras foram instaladas na fachada de banco em Curitiba para impedir que pessoas em situação de rua utilizassem o espaço abaixo da marquise  (Foto: Reprodução / Instagram)

Era fevereiro de 2021 quando circularam pelas redes sociais imagens emblemáticas do Padre Júlio retirando a marretadas as pedras que foram instaladas sob os viadutos Dom Luciano Mendes de Almeida e Antônio de Paiva Monteiro, na Zona Leste de São Paulo. A repercussão do caso chamou atenção para o tema e fez com que a prefeitura retirasse os equipamentos.

Ações parecidas também aconteceram no ano passado, no dia 12 de dezembro, quando Padre Júlio e alguns voluntários retiraram blocos de concreto que afugentavam a população em situação de rua no acesso da biblioteca Cassiano Ricardo, no Tatuapé, na mesma região da ação anterior.

Qual a mensagem nossas cidades transmitem? A quem pertencem essas cidades quando espaços públicos não podem ser utilizados por todos?

arquitetura hostil em divisória do banco da praça
A divisória do banco da praça restringe o seu uso e impede que pessoas em situação de rua possam utilizá-lo para descansar (Foto: Divulgação/ Flickr)

As cidades tornam-se pouco acolhedoras, construídas para os automóveis e sendo pouco desfrutadas pelos pedestres, onde a população acaba privilegiando espaços privados de uso coletivo, como os shoppings, por exemplo. São cada vez mais raros os lugares onde possa ser aproveitado “o ócio pelo ócio”, ver o tempo passar sem a pressão de consumir nada.

Somos reduzidos a consumidores, onde quem não compra nada não é bem-vindo.

Um espaço público hostil não resolve problemas urbanos, pelo contrário, apenas os intensifica. A solução efetiva passa por questões muito mais profundas como o enfrentamento à desigualdade social, à violência, o déficit habitacional, dentre outros aspectos.

pedras instaladas na fachada da Biblioteca Cassiano Ricardo
Voluntários quebram a marretadas pedras instaladas na fachada da Biblioteca Cassiano Ricardo, Zona Leste de São Paulo (Foto: Arquivo Pessoal/Rodrigo Jalloul)

A cidade é o território onde conflitos e diferenças acontecem, reflexo da sociedade que a constrói ao longo do tempo. Se a cidade é violenta e segregadora, é provável que a estrutura social também o seja.

Nossas cidades estão mais preocupadas em esconder os conflitos do que em solucioná-los.  Isso nos faz lembrar dos grandes paredões construídos ao redor de condomínios da elite para proteger quem está de dentro e segregar os que estão fora, mas isso é assunto para outro artigo. Temos muito o que questionar!

Publicado originalmente no ArchTrends
https://blog.archtrends.com/arquitetura-hostil/

Republicado no Blogue da Gotha
https://gotha.com.br/arquitetura-hostil-a-quem-pertencem-nossas-cidades/